terça-feira, 9 de outubro de 2012

Nada a acrescentar (que raiva)

YALE, CAMPO DE OURIQUE
Miguel Sousa Tavares (in Expresso, 29/9/2012)


«Quando o Governo subiu o IVA de 13 para 23% na restauração, António, temendo as consequências da subida de preços no seu pequeno restaurante de Campo de Ourique, resolveu encaixar ele o aumento...
sem o repercutir no preço das refeições. Aguentou até poder, mas mesmo assim a clientela começou a baixar lentamente: parte dela, que lhe assegurava umas trinta refeições ao almoço e metade disso ao jantar, era composta por funcionários públicos, que trabalhavam ali ao lado e cujos salários e subsídios tinham diminuído, com a medida destinada a satisfazer as condições do "ajustamento" da economia.

Quando reparou que Bernardo, um cliente fiel e diário, tinha passado a frequentar os seus almoços apenas três vezes por semana, António tomou aquilo como sinal dos tempos que ai vinham: sem outra alternativa, despediu a ajudante de cozinha, ficando apenas ele e a mulher no serviço de balcão e mesas e, lá dentro, um cozinheiro sem ajudante. Mas a seguir notou que também Carolina e Deolinda, que vinham almoçar umas três vezes por semana, agora vinham apenas uma e pouco mais comiam do que saladas ou ovos mexidos. Em desespero, teve de subir os preços e Eduardo, um reformado cuja pensão tinha diminuído, desapareceu de vez. Foi forçado a cortar drasticamente nas compras a Francisco, o seu fornecedor de peixe, e a atrasar-lhe os pagamentos: com cinco outros restaurantes, seus clientes, na mesma situação, Francisco viu o seu lucro reduzido a zero e optou por fechar a sua pequena empresa e inscrever-se no Fundo de Desemprego.

Mais tarde, quando Gaspar, o ministro das Finanças, anunciou mais um aumento do IRS e declarou que o "ajustamento" não se faria através do consumo interno, também Bernardo desapareceu para sempre e, depois de três meses sentado na sala vazia, dando voltas a cabeça com a mulher e tendo ambos concluído que já era tarde para emigrarem, António tomou a decisão mais triste da sua vida, encerrando o restaurante Esperança de Campo de Ourique e indo os dois engrossar também o rol dos desempregados a conta do Estado.

Apesar de ter gasto parte, agora importante, das suas poupanças de anos a anunciar o trespasse, António não conseguiu que ninguém lhe ficasse com o estabelecimento e não lhe restou alternativa senão entrega-lo ao senhorio Henrique, para não ter de pagar mais rendas. Quando desabou, demolidor, o novo aumento do IMI, já Henrique tinha desistido de conseguir alugar o espaço ou mesmo vender o imóvel: não pagou e deixou que as Finanças lhe levassem o prédio.

Assim se concluiu, neste pequeno microcosmos económico de Campo de Ourique, o processo de "ajustamento" da economia portuguesa: vários trabalhadores reconvertidos a marmita, cinco outros desempregados, duas pequenas empresas encerradas e um senhorio desprovido da sua propriedade.

Nessa altura, Gaspar, Rufus e Selassie deram-se conta, com espanto, de várias coisas que não vinham nos livros: que, apesar de aumentarem sistematicamente a carga fiscal, podia acontecer que a receita do Estado diminuísse; que os sacrifícios sem sentido implicavam mais recessão e a recessão custava mais caro ao Estado, sob a forma de mais subsídios de desemprego a pagar; que uma e outra coisa juntas não tinham permitido, ao contrário das suas previsões, diminuir o défice ou a dívida do Estado; e que o que mantinha o país a funcionar não eram as grandes empresas e grupos económicos protegidos, nem sequer os 7% de empresas exportadoras, mas sim os 93% de empresas dirigidas ao mercado interno, que respondiam pela esmagadora maioria dos empregos e atendiam as necessidades da vida corrente das pessoas comuns.

E, passeando melancolicamente nos jardins de Yale, numa chuvosa manhã de Thanksgiving, Rufus e Selassie deram com um velho cartaz colado a uma parede, desde os tempos da primeira campanha eleitoral de Bill Clinton: "É a economia, estúpidos!"»
 

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